sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

O luto


Fazer luto por alguém ou de alguma coisa é das coisas mais difíceis desta vida. Uma afronta, pensamos por vezes.

Fazer luto de uma morte não implica somente a realização, em cada dia que passa, que a pessoa que partiu não vai telefonar hoje, nem amanhã, nem depois de amnhã, nem nunca mais. Que nunca mais a vamos poder abraçar. Ouvi-la, discutir, vê-la dormir, ficar doente e voltar a ficar boa. Essa, sim, é a parte mais complicada do luto. A realização de que nunca mais a vamos voltar a tocar, sentir, a ouvir quem nos deixou. A parte dos haveres pessoais é das que mais custa num momento quase imediato e quase sempre obrigatório após a perda. A escolha da roupa, que não pode - manda o bom senso - continuar nos armários à espera que aquele ou aquela que a vestia, já não puxará mais do casaco ou do vestido para o usar da próxima vez, que nunca mais terá lugar.

Lembro-me que, quando a minha avó morreu, e eu, esgotada, fui levada para longe (bem longe. Mas nunca é o suficiente) pela minha mãe - numa tentativa maternal de me proteger do que não tem protecção possível, de descansar, de atenuar a dor da perda, dos embates diários da ausência de telefonemas, de abraços, de discussões, de mensagens, dos almoços - e o meu pai ficou com uma casa cheia de recordações para esvaziar num mês. Quisa fazê-lo sozinho. Teimoso. Quis ficar um mês a recordar, a embrulhar o que não pode ser embrulhado, a esvaziar o que ficará sempre cheio. Nesse mês e sobre esse mês, nunca trocámos uma palavra sobre o que se passous naquele 4º andas durante esse período, nem no coração do meu pai. Como se tivesse havido um luto de palavras. Sei que nunca algo foi tão difícil para o meu pai como esta irónica (sim, porque nestas alturas parece que a vida se ri de nós, levando-nos aos limites da dor, da incompreensão, da não aceitação e da realização ou da ausência dela) missão de esvaziar sozinho - como quis - a casa onde nasceu, onde a família se juntava, de escolher cada vestido da minha avó para dar - cada um com tantas recordações! -, de embrulhar cada prato, de decidir o que fazer á cama, a tudo. já uma das recordações de pequenina que guardo com mais intensidade foi quando o António Paveia morreu em directo num acidente de avião - que pilotava ao aterrar na Madeira - e nós os quatro (eu, a Fernanda Paveia, a minha mãe e o meu pai) assistimos atónitos ao anúncio em directo da mesa de jantar do António. Quis a Fernanda que o meu pai ficasse - como amigos inseparáves que eram - com uma série de pullovers do Fernando. Foi assim que apareceu lá em casa, o pullover azul-escuro que nunca esquecerei, com riscas azul-bebé, que o meu pai usou até que ficasse cheio de buracos. Porque adorava o Fernando e, talvez, assim, ele ficasse (ainda) mais vivo nas nossas vidas, cada vez que vestia esse pullover.

É assim, o luto. O luto das roupas, dos móveis, dos livros, das pessoas. O luto imediato que somos forçados a fazer. Tal como uma separação, o luto que fazemos após uma separação de alguém que amamos ou amámos tanto obriga-nos a esvaziar rapidamente a divisão das recordações, dos bons momentos, dos menos bons momentos, do espaço partilhado numa tentativa de autopreservação. Porque se não esvaziamos - tantas vezes de formas completamente irracionais para os outros, e quantas vezes para nós! - as recordações, são elas que se apropiam de nós, não nos deixam respirar, como é essencial para continuar a viver. Claro que há quem esvazie mais rapidamente a gaveta das recordações - pelo menos aparentemente, à vista dos outros -, pois talvez essas pessoas sejam as mais susceptíveis de morrerem sufocadas pelo que não se pode esquecer num dia, nem meses, nem, às vezes, em anos. São essas pessoas que os outros estranham, que julgam insensíveis e "despachados", que correm maior risco de se afogar na mágoa. Pessoas, como eu, que querem a todo o custo sobreviver às recordações, vir ao de cima numa atitude de sobrevivência, para não serem puxadas por elas como que apnhadas num remoinho ou numa corrente forte e perigosa.

A forma como se faz o luto diz tudo sobre as pessoas. Sobre a forma como as pessoas lutam para poderem continuar. Mas, só vê quem quer ver.


Ana Enes in 7 anos de mau sexo

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